O mínimo para viver: conscientizações e problematizações

O mínimo para viver: conscientizações e problematizações

Recentemente foi lançado pela Netflix o filme “O mínimo para viver”, obra que conta a história de Ellen, jovem de 20 anos que já passou por internações e sofre de anorexia, distúrbio alimentar caracterizado pelo DSM-V como um distúrbio que envolve a ingestão calórica mínima que leva a uma perda significativa de peso, medo constante de ganho de peso, comportamentos que interferem no aumento de peso, e alteração da imagem corporal. É um distúrbio que pode ser de causas genéticas, fisiológicas e ambientais.

O novo lançamento veio para se juntar ao conjunto de obras lançadas pela Netflix que mostram a realidade de uma forma mais explícita e, por isso, causam polêmica e incitam as mais diversas discussões e reflexões, como aconteceu com as séries “13 porquês” e “Cara gente branca”, mostrando opiniões tanto positivas quanto negativas.

Este filme, no geral, possui aspectos positivos e negativos, com alguns pontos que merecem ser citados:

A anorexia como ela é

Durante os 100 minutos de filme pode-se ter uma conscientização sobre como é o funcionamento de um sujeito com anorexia, além de uma amostra de outros transtornos alimentares, como a bulimia nervosa, embora explicitada em menor escala. Após a mudança de Ellen para uma casa de tratamento (que ao meu ver tinha uma abordagem mais humanizada que os hospitais que ela frequentara antes), pudemos ver como o transtorno se manifesta e como cada um possui diferentes repercussões.

Em algumas cenas Ellen contava as calorias presentes na comida que estava em seu prato; em outro momento uma jovem fica nervosa ao pensar na quantidade de calorias que um soro possui, pois ela teve que se alimentar por sonda, já que não se alimentava adequadamente; foram mostradas cenas nas quais as jovens falavam sobre vomitar após as refeições, discutindo até sobre a forma na qual elas faziam tal; também ilustraram imagens de Ellen correndo, “andando rápido”, fazendo abdominais e medindo o braço para verificar se ela consegue fechar a mão em seu braço, bem como faz menção ao uso de laxantes, além de mostrar a rotina da instituição, de mostrar a pesagem diária do habitantes da casa.

Tais cenas demonstram como a anorexia não só reflete na saúde física de alguém, como impacta diretamente o psicológico, e tal fator é determinante no curso da doença. Como definido anteriormente, além da alteração física, há o medo de ganhar peso e alteração da imagem corporal e da consciência sobre o transtorno. O fator psicológico é muito influente nesse caso, pois uma vez que o nosso psicológico, o “eu do transtorno” se olha no espelho e vê uma pessoa gorda ou que não está suficientemente magra, não há realidade externa que consiga convencer o contrário, é como se uma parte de nós guiasse totalmente o processo e a forma na qual vemos as coisas.

Nesses casos a tendência do sujeito com anorexia falar que está com tudo sob controle ou que nega a doença é alta, e por isso que nessas situações é difícil uma pessoa assumir que precisa de ajuda e tratamento, geralmente isso acontece quando já está em um estado avançado e os prejuízos biopsicossociais já são muito acentuados. O tratamento também tem diversas complicações, com probabilidade de recaídas, já que o fator psicológico tem muita influência, como ilustrado no filme, pois mesmo com Ellen e os jovens na casa, ela ainda fazia abdominais escondida e media os braços todo dia, além de negociar laxantes ao descobrir que sua colega purgava escondida.

A família

O filme também mostra a importância dá participação da família na prevenção e tratamento. É importante que os familiares estejam alinhados sobre como é o transtorno e como lidar com tal, tanto com o(a) parente que está com anorexia quanto como lidar com suas próprias repercussões em relação a isso.

A obra ilustrou o caso de uma família com pouco repertório para lidar com Ellen em seu estado. A mãe, que tem um histórico de transtorno mental, não suportou o quadro da filha e fez com que Ellen se mudasse para a casa do pai; o pai, que é ausente e aparentemente irritado, tenta constantemente se manter alheio de todas as situações, encontrando pretextos para não se encontrar com a filha e não comparecer a terapia familiar.

A madrasta e a irmã são as mais presentes e as que mais encorajam o tratamento de Ellen, porém ambas (assim como a mãe também), fazem menções que impactam a jovem, como falar constantemente sobre como sua aparência está feia, atos como fazer um bolo com os dizeres “Coma, Ellen”, e dizeres como “se você morrer eu te mato”.

A história mostra o lado dos familiares, como eles se sentem em relação a situação da parente anoréxica, porém retrata em partes como possivelmente os familiares no geral se comportam frente a isso e, portanto, o filme dá atenção ao fato de que a postura dos familiares e amigos deve ser discutida, conscientizada e trabalhada.

Cuidados e possíveis gatilhos

Embora o filme tenha um papel claro de conscientizar a população sobre os transtornos alimentares, apresenta um perigo semelhante a série “13 porquês”: a possibilidade de ser um gatilho. O filme ao meu ver não é indicado para quem tem predisposição, tem ou até já teve anorexia, pois o filme mostra em muitos momentos os modos que Ellen e suas colegas utilizam para emagrecer e burlar o tratamento, então há o perigo de o filme ser visto por alguns como um manual de “como praticar” e emagrecer.

O filme também retrata um grupo de jovens de cerca de 20 anos, brancas e a maioria magra. Porém, com base no DSM-V, a anorexia pode ser vivenciada por pessoas de ambos os gêneros, idade e raça. A incidência é maior em jovens, porém não se pode descartar tal diagnóstico quando uma pessoa mais velha apresentar os mesmos sintomas, por exemplo.

“O mínimo para viver” é de fato uma tentativa de mostrar a realidade de um anoréxico, e manda a mensagem de que é necessária a busca de ajuda para se curar do distúrbio, porém é um processo que só depende de nós mesmos, que depende de nós para lidar com o psicológico e com a realidade que este mostra. São 100 minutos que pretendem conscientizar aqueles que estão são familiares e pessoas próximas, para mostrar que a anorexia não é algo que é resolvido de maneira fácil que “é só comer” (como dito pela irmã de Ellen), mas que é um quadro complexo e que a melhora depende de muitos fatores, principalmente o emocional. Porém, como qualquer tentativa de retrato mais direto da realidade, é passível de gatilhos e cuidado na interpretação daquilo que é mostrado.

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Fernanda Correa Brito Araujo

Idealizadora e supervisora clínica da Desenvolviver, a psicóloga Fernanda Correa Brito Araujo (CRP 06/102387) tem especialização em Psicanálise Clínica, Neuropsicologia e Psicologia do Trânsito, forte experiência em Perícia Forense, Psicologia Escolar e Recursos Humanos, com passagem por multinacionais como Roche, Allergan e General Eletric do Brasil.

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